Novos (e bons) tempos à regulação dos contratos de seguros no Brasil?

Os três principais pilares que devem estruturar o agir por parte do órgão regulador do mercado de seguros privados são: 1) a higidez econômico-financeira de seus participantes, designadamente, seguradoras e resseguradoras; 2) a proteção ao direito de consumidores, o que se revela acentuado nos seguros chamados massificados [1]; e 3) a tutela ao exercício da livre concorrência, consoante previsto no artigo 170, inciso IV, da Constituição da República.

A propósito do primeiro pilar, pode-se afirmar que não haveria confiança em mercados de seguros instáveis, cujos subscritores de riscos fossem incapazes de liquidar os sinistros que se lhes avisassem. Não é sem razão, portanto, que o vetusto Decreto-Lei nº 73, de 23/11/1966, em seu artigo 36, letra “f”, outorga à Superintendência de Seguros Privados (Susep) o dever de fiscalizar as reservas técnicas das sociedades seguradoras o que, vale anotar, vem sendo cumprido de maneira exemplar a considerar o reduzidíssimo quantitativo de companhias fiscalizadas que tenham ingressado nos regimes de liquidação extrajudicial/falência (Decreto-Lei nº 73, artigos 94 et seq[2].

A proteção aos consumidores, representados esquematicamente pelo segundo pilar, revela-se essencial porque é deles que se origina demanda altamente representativa daqueles que contratam seguros em nosso país. Não há dúvida de que entre as empresas de porte médio e/ou grande, já existe uma cultura em torno da contratação de seguros os mais variados, realidade que se revela distinta quando se examinam as camadas sociais menos favorecidas de nossa sociedade [3].

O terceiro pilar remete à tutela da livre concorrência, tema que, por muito tempo, passou completamente despercebido, tanto por parte do público consumidor, quanto por parte do órgão regulador [4]. É difícil explicar a razão para isso, tendo em conta que, claramente, o mercado de seguros é altamente regulado. Como, então, explicar a falta de interesse por questões atinentes à tutela da concorrência?

Acredita-se que a resposta decorra de características próprias do marco regulatório do mercado segurador brasileiro até a presente data, que, gradativamente, vem apresentando claros sinais de mudança, especificamente a partir do disposto na Circular Susep nº 621, de 12/2/2021 (seguro de danos), bem como de dois editais de consulta pública disponibilizados pelo órgão regulador (Editais números 06/2021 e 18/2020), o primeiro referente aos seguros do grupo de responsabilidades (D&O, E&O, Cyber, Ambiental, RC Geral), o segundo relacionado aos chamados seguros para grandes riscos.

Essencialmente, a Susep pretende estabelecer tratamentos distintos para os seguros massificados e aos seguros de grandes riscos, movimento que, justamente, vai ao encontro dos pilares 2 e 3 acima referidos. Ao propor a prevalência da autonomia privada às relações paritárias [5], nas quais segurados e seguradoras sejam pessoas jurídicas, o órgão regulador prestigia a principiologia prevista na Lei nº 13.874, de 20/9/2019 (a chamada Lei da Liberdade Econômica). A contrario sensu, isto é, diante de relações de consumo, os planos padronizados poderão continuar a ser adotados, até que sejam descontinuados [6].

No concernente ao pilar 3, a liberdade — rectius capacidade criativa — outorgada aos contratantes fará com que as seguradoras passem a concorrer, principalmente, levando em consideração a qualidade das coberturas que oferecem. Quando se remete à qualidade, pode-se refletir a respeito de limites financeiros, abrangência territorial, delimitação causal dos riscos cobertos, riscos excluídos e, por fim, franquias e prêmio.

No modelo de contratação de seguros empregado até a presente data, o estabelecimento de condições gerais, especiais e particulares, obrigatoriamente observada pelas seguradoras, acabava por engessar a concorrência que, ao fim e ao cabo, apenas dizia respeito a uma comparação superficial de franquias e prêmios cobrados; todo o mais — o aspecto referido no parágrafo anterior como qualidade — lamentavelmente, acabava se resumindo aos standards estabelecidos pelo órgão regulador.

A mudança preconizada pelos novos normativos, espelhados pela Circular nº 621 e pelos já mencionados editais de consulta pública em aberto, sem dúvida, provocará mudanças importantes no mercado de seguros brasileiro, além de, é claro, também impactar o mercado de resseguro local. Ora, em havendo alterações relevantes nos clausulados disponibilizados pelas seguradoras, seus resseguradores, respectivamente, também precisarão observar cautelosamente essas mudanças, evitando, assim, indesejados gaps de cobertura.

Da Circular Susep nº 621, que dispõe sobre as regras de funcionamento e os critérios para operação das coberturas dos seguros de danos, realçam-se, entre outras, as seguintes alterações: 1) aplicabilidade facultativa aos seguros de danos para grandes riscos (artigo 1º, §2º); 2) a estruturação de clausulados por meio de cláusulas especiais e particulares passa a ser opcional (artigo 9º. §1º); e 3) possibilidade de livre escolha de prestadores de serviços pelos segurados e/ou indicação de rede referenciada pelas seguradoras (artigo 21).

Do Edital de Consulta nº 06/2021, a propósito dos seguros para o chamado grupo de responsabilidades, destacam-se as seguintes alterações: 2) unificação normativa da disciplina aplicável aos seguros de RC geral, D&O, E&O, cyber e ambiental; 2) de sua exposição de motivos, colhe-se que é do interesse da Susep “estabelecer uma regulamentação mais simples, flexível e com viés menos prescritivo. Por outro lado, cuidou-se de preservar o balizamento normativo mínimo, importante para dar segurança jurídica às relações contratuais, bem como prevenir desvios nas práticas de mercado. Tudo em linha com os princípios norteadores da Lei nº 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”.

Por fim, sobreveio o edital de consulta nº 18/2020, a tratar dos seguros para grandes riscos. Essencialmente, a novel norma, se aprovada, representará uma mudança de paradigma na maneira que, até então, regulava os clausulados no país. De um formato regulatório rígido e intrusivo, passa-se a um formato flexível e principiológico, cabendo aos contratantes, a partir de então, exercer a sua capacidade criativa com plenitude — o que, consequentemente, lhes trará maiores responsabilidades.

As inovações que serão introduzidas nos seguros de danos, de responsabilidades e nos seguros para grandes riscos em nada prejudicarão os seguros massificados, ou seja, onde a tutela de consumidores se fizer relevante não haverá solução de continuidade. A disrupção, se se permitir empregar o vocábulo de vanguarda, opera-se em arena distinta, na qual as partes são plenamente capazes, técnica, financeira e juridicamente.

Cabe à Susep um elogio pelo feito que, há tanto tempo, era aguardado pelo mercado brasileiro de seguros. Ao mesmo tempo, impõe-se ao mercado, seguradoras e resseguradoras, fazer a transição do modelo antigo, marcado pelo acentuado dirigismo contratual, para o novo, no qual a autonomia privada exercida plenamente trará, a reboque, maiores responsabilidades no que se refere à elaboração de seus contratos.

O mercado brasileiro de seguros para grandes riscos, assim, finalmente caminhará seguindo o modelo adotado por mercados seguradores mais desenvolvidos, potencializando a capacidade criativa e, assim, gerando o exercício da concorrência de maneira verdadeira [7]. Sem dúvida alguma, portanto, há novos e bons tempos para a regulação dos seguros de grandes riscos no Brasil à vista.


[1] Entende-se por seguros massificados aqueles nos quais a relação jurídica é desenvolvida entre consumidor (tomador-segurado) e seguradora (fornecedora), havendo, claramente, vulnerabilidade técnica e econômica daquele em relação a esta. Entre outros, são exemplos os seguros de automóvel, residencial, vida e acidentes pessoais, saúde, prestamistas etc.

[2] No tocante à relevância de que as reservas técnicas sejam cuidadosamente observadas, importante observar que o descumprimento das normas respectivas é qualificado como crime contra a economia popular pelo artigo 110 do mencionado Dec. Lei nº. 73/1966. Verbis: “Constitui crime contra a economia popular, punível de acôrdo com a legislação respectiva, a ação ou omissão, pessoal ou coletiva, de que decorra a insuficiência das reservas e de sua cobertura, vinculadas à garantia das obrigações das Sociedades Seguradoras”.

[3] Para uma análise detalhada a respeito da penetração do seguro na sociedade como indicador de desenvolvimento, confira-se a pesquisa anualmente elaborada pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), disponível em: https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=INSIND, acesso em: 30/3/2021.

[4] Para uma visão a respeito do direito da concorrência aplicado ao mercado de seguros privados, consulte-se o artigo do caríssimo professor Pedro Marcos Nunes Barbosa: Direito antitruste e direito dos seguros. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Temas atuais de direito dos seguros, Tomo II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. pp. 864-880.

[5] A propósito, portanto, da não incidência do Código de Defesa do Consumidor nas relações ditas paritárias, vale relembrar da proposta de Paula A. Forgioni, no concernente a uma nominada “teoria geral dos contratos empresariais”. Forgioni reprime a aplicabilidade da lei protetiva às relações paritárias da seguinte forma: “Definição dos contratos empresariais. A exclusão dos contratos com consumidores. Fixadas essas premissas, conclui-se que os contratos com consumidores (ou “B2C”, na terminologia estadunidense) não mais integram o direito comercial. […] a confusão entre os contornos do direito comercial e do direito do consumidor pode comprometer a percepção dos fundamentos do primeiro. As matérias possuem lógicas diversas, de forma que a aplicação do Código do Consumidor deve ficar restrita às relações de consumo, ou seja, àquelas em que as partes não se colocam e não agem como empresa. De outra parte, se o vínculo estabelece-se em torno ou em decorrência da atividade empresarial de ambas as partes, premidas pela busca do lucro, não se deve subsumi-lo à lógica consumerista, sob pena de comprometimento do bom fluxo de relações econômicas”. (FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2009. pp. 29-34).

[6] Do sítio da Susep, colhe-se a seguinte informação a respeito: “Por meio da Circular Susep nº 621, de 12 de fevereiro de 2021, a Susep revogou a Circular Susep nº 265, de 16 de agosto de 2004, que dispunha sobre planos padronizados e planos não padronizados. As condições contratuais aqui dispostas são de uso facultativo pelas sociedades seguradoras e se referem a normativos ainda vigentes, que serão progressivamente revisados e revogados, seguindo os objetivos estratégicos de simplificar a regulação dos mercados e promover um ambiente favorável ao desenvolvimento de um mercado competitivo, transparente, inovador e com maior cobertura.” (http://www.susep.gov.br/menu/atos-normativos/condicoes-contratuais-padronizadas-1, visitado em 3.4.2021).

[7] A título de ilustração, a lei de seguros da Espanha (Ley nº. 50/1980), em seu artigo 44, estabelece que para os seguros de grandes riscos não é aplicável o regime protetivo anunciado pelo artigo 2º, da mesma. Eis os seus termos: “Artículo 44 […] No será de aplicación a los contratos de seguros por grandes riesgos, tal como se delimitan en esta Ley, el mandato contenido en el artículo 2 de la misma”. O artigo 2º, por seu turno, dispõe: “Las distintas modalidades del contrato de seguro, en defecto de Ley que les sea aplicable, se regirán por la presente Ley, cuyos preceptos tienen carácter imperativo, a no ser que en ellos se disponga otra cosa. No obstante, se entenderán válidas las cláusulas contractuales que sean más beneficiosas para el asegurado”.

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