O contrato de seguro de responsabilidade civil para administradores de sociedades, mais conhecido pelo p\u00fablico como seguro D&O, vem, paulatinamente, despertando a aten\u00e7\u00e3o do empresariado brasileiro. Compliance, governan\u00e7a corporativa, pacotes de benef\u00edcios oferecidos a executivos, entre outras variadas raz\u00f5es, v\u00eam impulsionando uma penetra\u00e7\u00e3o cada vez maior deste contrato de seguro no Pa\u00eds.<\/p>\n
Para al\u00e9m das raz\u00f5es ora mencionadas, h\u00e1 uma, em especial, que permite referir a uma \u201cquase obrigatoriedade\u201d quanto \u00e0 sua contrata\u00e7\u00e3o, qual seja, o risco de que os administradores venham a ser responsabilizados, bastando, para tanto, que assumam fun\u00e7\u00f5es de diretoria, conselhos de administra\u00e7\u00e3o e fiscal, membros de comit\u00eas de auditoria etc.[1]<\/p>\n
\u00c9 que ser administrador \u00e9 o quanto basta para que surjam as mais variadas demandas de responsabilidade, cuja origem pode variar de maneira ampl\u00edssima. E.g. quest\u00f5es de ordem consumerista, trabalhista, tribut\u00e1ria, concorrencial, regulat\u00f3ria, ambiental, civil, societ\u00e1ria, entre tantas outras, apresentam um efeito colateral que vai ao encontro da assertiva formulada acima: o administrador consciente de sua responsabilidade n\u00e3o assumir\u00e1 o encargo respectivo sem uma robusta ap\u00f3lice de seguro D&O, para a qual se opere a transfer\u00eancia dos riscos financeiros que pesam sobre o seu pr\u00f3prio patrim\u00f4nio.<\/p>\n
O seguro D&O, assim, tem por finalidade oferecer prote\u00e7\u00e3o ao ato de gest\u00e3o praticado pelo administrador. Noutras palavras, em sendo deflagradas demandas de responsabilidade causalmente relacionadas ao ato de gest\u00e3o, o pressuposto fundamental \u00e0 cobertura securit\u00e1ria estar\u00e1 preenchido.<\/p>\n
A defini\u00e7\u00e3o do que seja o ato de gest\u00e3o reveste-se de alguma complexidade, o que dificulta a correta compreens\u00e3o do risco coberto por este contrato de seguro. A doutrina, assim, para chegar \u00e0 defini\u00e7\u00e3o, parte de uma constru\u00e7\u00e3o inversa, qual seja, a defini\u00e7\u00e3o do ato irregular de gest\u00e3o. Examinando o art. 158 da Lei n\u00ba. 6.404, de 15.12.1976, a primeira parte do caput assinala que \u201co administrador n\u00e3o \u00e9 pessoalmente respons\u00e1vel pelas obriga\u00e7\u00f5es que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gest\u00e3o\u201d, ao passo que a parte final assevera \u201cresponde, por\u00e9m, civilmente, pelos preju\u00edzos que causar, quando proceder: I \u2013 dentro de suas atribui\u00e7\u00f5es ou poderes, com culpa ou dolo; II \u2013 com viola\u00e7\u00e3o da lei ou do estatuto.\u201d<\/p>\n
Extraindo o conte\u00fado normativo do dispositivo, conceitua-se o ato irregular de gest\u00e3o como aquele no qual estejam presentes a culpa ou o dolo do administrador, al\u00e9m das viola\u00e7\u00f5es da lei e\/ou do estatuto. \u00c9 dizer que restando verificadas essas hip\u00f3teses, haver\u00e1 responsabilidade do administrador.<\/p>\n
Quanto \u00e0 interse\u00e7\u00e3o entre a ora formulada acima e a cobertura provida pelo seguro D&O, cumpre formular um corte metodol\u00f3gico importante: para condutas culposas, o seguro D&O oferecer\u00e1 cobertura; para condutas dolosas, n\u00e3o. Exatamente nesses termos apresenta-se a Circular SUSEP n\u00ba. 553, de 23.5.2017, designadamente o art. 5\u00ba., ao definir que \u201cno seguro de RC D & O, a sociedade seguradora garante aos segurados, quando responsabilizados por danos causados a terceiros, em consequ\u00eancia de atos il\u00edcitos culposos praticados no exerc\u00edcio das fun\u00e7\u00f5es para as quais tenham sido nomeados, eleitos e\/ou contratados [\u2026]\u201d.<\/p>\n
A exclus\u00e3o de cobertura para condutas dolosas encontra-se assinalada nas defini\u00e7\u00f5es, cujo art. 3\u00ba., inc. XVII, enfatiza que \u201ca garantia do seguro n\u00e3o se aplica nos casos em que os danos causados a terceiros decorram de atos il\u00edcitos dolosos, isto \u00e9, praticados pelo segurado comprovadamente com dolo ou culpa grave.[2]<\/p>\n
\u00c0 diferen\u00e7a de outros tantos contratos de seguros nos quais h\u00e1 facilidade para examinar a culpa e o dolo do segurado, o seguro D&O requer o aprofundamento de ao menos uma disciplina adicional, qual seja, a responsabilidade do administrador e, mais precisamente, o exame do que representam os deveres de dilig\u00eancia e de lealdade, previstos, respectivamente, nos artigos 153[3] e 155[4] da Lei n\u00ba. 6.404, de 15.12.1976.<\/p>\n
Nos seguros autom\u00f3vel e inc\u00eandio, por exemplo, a culpa e dolo por parte do segurado ser\u00e3o muito facilmente verificados. Com efeito, distrair-se e atropelar um pedestre e\/ou deixar de fazer manuten\u00e7\u00e3o no sistema de sprinklers e, assim, acabar gerando a propaga\u00e7\u00e3o do fogo, jamais ser\u00e3o equipar\u00e1veis \u00e0 assun\u00e7\u00e3o da dire\u00e7\u00e3o de um ve\u00edculo com o objetivo de atropelar e matar um inimigo, ou com o empres\u00e1rio que, deliberadamente, ateia fogo em seu estabelecimento comercial para receber a soma segurada.<\/p>\n
A culpa do administrador requer o exame detido do conte\u00fado do dever de dilig\u00eancia. N\u00e3o h\u00e1 como responder \u00e0 pergunta formulada no t\u00edtulo sem estudar esta disciplina. Qualificar-se, informar-se, vigiar e, conforme for, investigar, al\u00e9m de, adicionalmente, informar ao mercado a respeito de fatos relevantes, tratam-se de desdobramentos do dever de dilig\u00eancia.[5]<\/p>\n
Por outro lado, o dolo do administrador encontra fonte diversa, qual seja, a viola\u00e7\u00e3o ao dever de lealdade. O administrador que se aproveitar de oportunidade endere\u00e7ada \u00e0 sociedade, que estabelecer concorr\u00eancia com a mesma valendo-se de informa\u00e7\u00e3o privilegiada, que comprar ou vender a\u00e7\u00f5es \u00e0s v\u00e9speras da divulga\u00e7\u00e3o de fato relevante, que, ao argumento de que a sociedade se encontra endividada dirigir a oportunidade para proveito pr\u00f3prio, n\u00e3o deve esperar a cobertura do seguro D&O. [6]<\/p>\n
Em mat\u00e9ria de responsabilidade do administrador, a doutrina ensina que um grave problema de compreens\u00e3o desta disciplina decorre da tentativa de compreend\u00ea-la sem que segmentem os campos de incid\u00eancia dos deveres dilig\u00eancia e de lealdade. O pretenso exame conjunto peca justamente porque deixa de estabelecer o corte metodol\u00f3gico a que nos referimos anteriormente, cujos efeitos para o seguro D&O s\u00e3o important\u00edssimos.[7]<\/p>\n
Enquanto que o administrador negligente \u2013 rectius, n\u00e3o diligente \u2013 acaba por prejudicar-se em raz\u00e3o de sua conduta, seja pela perda de b\u00f4nus, cr\u00edticas as mais variadas e at\u00e9 mesmo a sua demiss\u00e3o, o administrador desleal pode auferir ganhos vultos\u00edssimos como consequ\u00eancia de sua conduta.<\/p>\n
Ontologicamente, esses dois deveres n\u00e3o se confundem e, a consequ\u00eancia pr\u00e1tica disto decorrente para o contrato de seguro D&O \u00e9 exatamente a cobertura para as viola\u00e7\u00f5es ao dever de dilig\u00eancia e a exclus\u00e3o do risco decorrente das viola\u00e7\u00f5es ao dever de lealdade. Iterativa, a prop\u00f3sito, a li\u00e7\u00e3o extra\u00edda do julgamento do Recurso Especial n\u00ba. 1.601.555\/SP, Relator o Ministro Ricardo Villas B\u00f4as Cueva que, analisando hip\u00f3tese na qual o segurado atuou como insider trading, assentou: \u201co seguro de RC D&O somente possui cobertura para (i) atos culposos de diretores, administradores e conselheiros (ii) praticados no exerc\u00edcio de suas fun\u00e7\u00f5es (atos de gest\u00e3o). Em outras palavras, atos fraudulentos e desonestos de favorecimento pessoal e pr\u00e1ticas dolosas lesivas \u00e0 companhia e ao mercado de capitais, a exemplo do insider trading, n\u00e3o est\u00e3o abrangidos na garantia securit\u00e1ria\u201d.[8]<\/p>\n
Respondendo sinteticamente \u00e0 quest\u00e3o formulada no t\u00edtulo, o contrato de seguro D&O serve \u00e0s viola\u00e7\u00f5es ao dever de dilig\u00eancia e em hip\u00f3tese alguma servir\u00e1 \u00e0s viola\u00e7\u00f5es ao dever de lealdade.<\/p>\n
*Esta coluna \u00e9 produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contempor\u00e2neo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).<\/p>\n
[1] Afirma-se de maneira at\u00e9cnica a respeito de uma \u201cquase obrigatoriedade\u201d porque, do ponto de vista estritamente legal, ou a contrata\u00e7\u00e3o \u00e9 obrigat\u00f3ria ou n\u00e3o \u00e9; n\u00e3o h\u00e1 espa\u00e7o para \u201cmeia obriga\u00e7\u00e3o\u201d. Ocorre, todavia, que sem embargo da inexist\u00eancia de uma previs\u00e3o legal que torne compuls\u00f3ria a contrata\u00e7\u00e3o do seguro D&O pelo empresariado brasileiro, os fatos demonstram que, ao menos nas sociedades an\u00f4nimas cotizadas, dentre aquelas que comp\u00f5em o \u00edndice BMF-Bovespa a contrata\u00e7\u00e3o do seguro D&O \u00e9 muito pr\u00f3xima aos 100%. Dentre as 53 companhias que comp\u00f5em o \u00edndice BMF-Bovepsa, apenas uma revelou n\u00e3o contratar o seguro D&O. Informa\u00e7\u00f5es dispon\u00edveis no relat\u00f3rio n\u00ba 83\/2016-CVM\/SEP\/GEA-3, elaborado pela Comiss\u00e3o de Valores Mobili\u00e1rios.<\/p>\n
[2] A equipara\u00e7\u00e3o da culpa grave ao dolo merece aten\u00e7\u00e3o especial em mat\u00e9ria de responsabilidade de administradores, o que gera consequ\u00eancias diretas \u00e0 \u00f3rbita do contrato de seguro D&O. Para um aprofundamento dessa tem\u00e1tica seja permitido referir ao nosso: GOLDBERG, Ilan. O contrato de seguro D&O. 2019. 504 f. Tese. (Doutorado em Direito Civil.) \u2013 Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., no prelo.<\/p>\n
[3] Lei n\u00ba. 6.404, de 15.12.1976. Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exerc\u00edcio de suas fun\u00e7\u00f5es, o cuidado e dilig\u00eancia que todo homem ativo e probo costuma empregar na administra\u00e7\u00e3o dos seus pr\u00f3prios neg\u00f3cios.<\/p>\n
Art. 155. O administrador deve servir com lealdade \u00e0 companhia e manter reserva sobre os seus neg\u00f3cios, sendo-lhe vedado: I \u2013 usar, em benef\u00edcio pr\u00f3prio ou de outrem, com ou sem preju\u00edzo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em raz\u00e3o do exerc\u00edcio de seu cargo; II \u2013 omitir-se no exerc\u00edcio ou prote\u00e7\u00e3o de direitos da companhia ou, visando \u00e0 obten\u00e7\u00e3o de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de neg\u00f3cio de interesse da companhia; III \u2013 adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necess\u00e1rio \u00e0 companhia, ou que esta tencione adquirir. \u00a7 1\u00ba Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informa\u00e7\u00e3o que ainda n\u00e3o tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em raz\u00e3o do cargo e capaz de influir de modo ponder\u00e1vel na cota\u00e7\u00e3o de valores mobili\u00e1rios, sendo-lhe vedado valer-se da informa\u00e7\u00e3o para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobili\u00e1rios. \u00a7 2\u00ba O administrador deve zelar para que a viola\u00e7\u00e3o do disposto no \u00a7 1\u00ba n\u00e3o possa ocorrer atrav\u00e9s de subordinados ou terceiros de sua confian\u00e7a. \u00a7 3\u00ba A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobili\u00e1rios, contratada com infra\u00e7\u00e3o do disposto nos \u00a7\u00a7 1\u00b0 e 2\u00b0, tem direito de haver do infrator indeniza\u00e7\u00e3o por perdas e danos, a menos que ao contratar j\u00e1 conhecesse a informa\u00e7\u00e3o. \u00a7 4o \u00c9 vedada a utiliza\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o relevante ainda n\u00e3o divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobili\u00e1rios.<\/p>\n
[5] A prop\u00f3sito da complexidade de que se reveste o dever de dilig\u00eancia, refere-se \u00e0s seguintes obras: BRIGAG\u00c3O, Pedro Henrique Castello. A administra\u00e7\u00e3o de companhias e a business judgment rule. S\u00e3o Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 62. BARRETO, J\u00falio. O conflito de interesses entre a companhia e seus administradores. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 133., PARENTE, Fl\u00e1via. O dever de dilig\u00eancia dos administradores de sociedades an\u00f4nimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 34. Na Espanha, GUERRERO TREVIJANO, Cristina G. El deber de diligencia de los administradores en el gobierno de las sociedades de capital. La incorporaci\u00f3n de los principios de la business judgment rule al ordenamiento espa\u00f1ol. Cizur Menor (Navarra): Thomson Reuters\/Aranzadi, 2014. p. 131. Em Portugal, RAMOS, Maria Elisabete Gomes. O seguro de responsabilidade civil dos administradores: entre a exposi\u00e7\u00e3o ao risco e a delimita\u00e7\u00e3o da cobertura. Coimbra: Almedina, 2010. p. 105.<\/p>\n
[6] Refer\u00eancias espec\u00edficas ao dever de lealdade podem ser observadas em PORTELLANO DIEZ, Pedro. Deber de fidelidad de los administradores de sociedades mecantiles y oportunidades de negocio. Madrid: Civitas, 1996. BROWN, J. When opportunity knocks: an analysis of the Bridney & Clark and ALI Principles of Corporate Governance Proposals for deciding corporate opportunity claims . J Corp, L. 1986, p. 257. EISENBERG, Melvin Aron. An overview of the principles of corporate governance. The Business Lawyer. v. 48. 263.<\/p>\n
[7] Em mat\u00e9ria de responsabilidade de administradores de sociedades, C\u00e1ndido Paz-Ares faz anota\u00e7\u00e3o enf\u00e1tica: \u201cNo pueden meterse dentro del mismo saco la regulaci\u00f3n de los \u2018actos de gesti\u00f3n indebida\u2019 y la regulaci\u00f3n de los \u2018actos de apropiaci\u00f3n indebida\u201d. PAZ-ARES, C\u00e1ndido. La responsabilidad de los administradores como instrumento de gobierno corporativo. In Revista para el An\u00e1lisis del Derecho. ISSN-e 1698-739X, n\u00ba. 4, 2003. p. 4-5. No mesmo sentido RAMOS, Maria Elisabete Gomes. O seguro de responsabilidade civil dos administradores: entre a exposi\u00e7\u00e3o ao risco e a delimita\u00e7\u00e3o da cobertura. Coimbra: Almedina, 2010. p. 172-173.<\/p>\n
[8] STJ. REsp n\u00ba. 1.601.555, Rel. Min. Ricardo Villas B\u00f4as Cueva, 3\u00aa T, DJ 14.2.2017.<\/p>\n
Ilan Goldberg \u00e9 doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regula\u00e7\u00e3o e Concorr\u00eancia pela Universidade C\u00e2ndido Mendes, professor visitante da FGV Direito Rio, EMERJ e Escola Nacional de Seguros, al\u00e9m de advogado, s\u00f3cio de Chalfin, Goldberg, Vainboim & Fichtner.<\/p>\n
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